17 de jan. de 2015

"Eu gostaria de pensar que o computador é neutro, uma ferramenta como outra qualquer, um martelo que pode construir uma casa ou estraçalhar o cérebro de alguém. Mas há algo no próprio sistema, na lógica simétrica de programas e informações, que recria o mundo à sua imagem. Como a cultura do rock and roll, ele funda um irresistível país nivelado que destrói toda a antiga e lenta cultura de deveres, costumes, lesi e vida social. Achamos que estamos criando o sistema para atender a nossos fins. Acreditamos que o produzimos à nossa imagem. Chamamos o microprocessador de 'cérebro', e dizemos que a máquina tem ´memória´. Mas o computador não é como nós. É a projeção de um pedaço muito pequeno de nós: a parte consagrada à lógica, à ordem, às regras e à clareza. É como se pegássemos o jogo de xadrez e o considerássemos o máximo da vida humana.

Depositamos essa pequena projeção de nós mesmos em tudo que nos cerca e passamos a contar com ela. Para proteger dados, comprar gasolina, guardar dinheiro, ou escrever cartas - já não podemos mais viver sem nada disso. O único problema é este: quanto mais nos cercamos dessa noção limitada da vida, mais limitada a vida se torna. Ficamos adaptados á esfera de ação que o sistema permite, Sim ou Não, Ok ou Cancelar." 

(trecho extraído de 'Perto da Máquina' de Ellen Ullman)

20 de out. de 2014

Concreto Totalitário


O concreto se instaurou sobre a cidade, sobre nossas vidas. Furtou todos os espaços, relegando nos à realidade, a realidade concreta, absoluta. Não há espaço para utopia, prendam o poeta, ou melhor: façam-no trabalhar! O concreto é a imobilização da terra, o alinhamento da cidade, é a estagnação, a sobreposição da razão sobre todas as coisas. O metal, o asfalto e o cimento se impõem como uma lei - é preciso progredir! -, e como ordem, precisam ser constantemente reforçados. O poder é a afirmação do poder, um desvairo, uma insistência: constantes gritos, menosprezo, policiais andando nas ruas... Pode tapar as rachaduras quantas vezes conseguir, a Natureza, anárquica, jamais cessará.

Uma flor nasceu na rua rua. Furou o asfalto, o tédio o nojo e o ódio

21 de set. de 2014

Das ofensas racistas que Aranha sofreu em campo e o moralismo que permeia o debate social do caso



Encucado aqui com o porque desta imagem não ter sido tão difundida quanto a da garota que chamou o goleiro Aranha de macaco. A ofensa desta imagem é dirigida também ao goleiro, no reencontro da torcida do grêmio com Aranha, após a "polêmica" (como a grande imprensa gosta de tratar)... Será que é por que é mais fácil (por machismo) atacar uma mulher? Não que ela não merecia ter sido exposta, penso que temos que expor os algozes, os violentos, e toda opressão/opressor que identificarmos. Mas por quê só ela foi exposta. O ódio que a exposição dela causou nos corações de tanta gente, inclusive racista (tenho certeza), imagino que não tenha sido, em muitos casos, por solidariedade ao Aranha, a todos os negros, ou levando mais a diante, a todos "não brancos" que se viram, e se vêem sempre, ali naquela arena, rodeadas, atacadas por todos lados, diminuídas...


Bom, pensando na fúria dirigida à garota que, como disse, creio ser também nutrida por muitos racistas, vislumbro outra hipótese: o racismo não têm espaço para ser discutido na grande mídia nem entre uma esmagadora parcela da sociedade, o que se discute é a moral, as pessoas não evitam ser racistas por empatia, solidariedade, respeito, ética... por nada disso, o que elas, em geral, evitam é serem imorais. E, em algum momento da história do país, xingar de macaco passou a ser considerado um ato feio, errado, absurdo, obsceno - uma conquista importante para que as pessoas não sejam ofendidas e rebaixadas a ideia de que são involuídas, motivada por uma crença científica na evolução dos seres vivos. Crença que é permeada de preconceitos sustentados numa noção mesquinha de méritos. Mas voltando: uma conquista importante para que não sejam ofendidas, tanto quanto eram, com o termo "macaco", pequena mas importante, mínima (já que o termo, com tal significado, não será suprimido na nossa linguagem, continuará se propagando, menos, mas continuará) mas não nula.

Voltando a questão moral: o que não pode é ser imoral, não racista. Tanto que o racismo passa batido quando veste roupas que não passam pelo crivo moral da maioria das pessoas, quando é uma ironia por exemplo, como na imagem acima.

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Vídeo onde a imagem aparece: http://glo.bo/XGwguF

8 de ago. de 2014

Assum Preto


Quando nasci
Um médico que assistia o parto, impaciente
Empurrou a barriga da mamãe
Pra que eu saísse sem demora
Por mais que a médica que coordenava
Estivesse tranquila, achando que eu já viria
Que estávamos em ótima condição
Pra que logo logo eu viesse pra fora
Mas mães não entendem de parto
Quem entende de parto é especialista

Depois mamãe, ao fazerem minha ficha
Foi perguntada qual era a minha cor
Numa brincadeirinha de faz de conta
Dessas que justificam a liberdade da gente
Ela perguntou a moça se tinha uma opção "não responder"
Se podia deixar em branco
A moça não respondeu minha mãe
E pôs no papel que eu era branca
Botou lá também: Feminino
Como assim? Só tinha duas opções
E ainda nem escolhi
Talvez meu destino estivesse mesmo traçado
E eu tenha nascido pra carregar bandeira
Por mais que ao me darem a palavra
Tivessem pensado outra coisa

Papai foi lá no cartório
Dentro mesmo do hospital
Disse que eu era Assum Preto
Pássaro oprimido, de sina triste
Cantado pelo Gonzaga
Pássaro lindo, ave esperta
A Graúna do moço Henfil
Mas de novo disseram que eu era branca
E precisava ter nome de opressor
Precisa do nome do pai
Que veio do avô... do avô do avô...
Sabe lá de onde veio esse nome
E menos ainda por onde passou
Escravocatas, apropriadores da terra... derramam sangue
Lágrimas.
Terei de ser via pra propagação da Família?
Patriarcal, brasileira, católica, gente de bem. Bens?!
Mas esses, pedra no caminho, não passarão!!!
Eu, passarinho!